
Até há bem pouco tempo, o fazendeiro era objeto da consideração e da estima indiscutida de todas as camadas sociais do País. Sua figura, como ela se delineou nas primeiras décadas deste século, é bem conhecida de todos.
Senhor de terras adquiridas pelo trabalho árduo e honrado ou por uma legítima sucessão hereditária, não se contentava em tirar delas, preguiçosamente, o estrito necessário para sua subsistência e a dos seus. Pelo contrário, movido por um nobre anseio de crescente bem-estar e ascensão cultural, aspirava ele ao pleno aproveitamento da fonte de riqueza que tinha em mãos. Para isto, franqueava suas terras largamente às famílias de trabalhadores braçais que, vindos de todos os quadrantes do Brasil e das mais variadas regiões do mundo, procuravam no campo as condições de uma existência honesta e segura. Dedicado de sol a sol à direção da faina rural, o proprietário, associado assim aos trabalhadores braçais na tarefa de tirar do solo recursos de que um e outros iam viver, era verdadeiramente o “pater”, o “patrão” de cujos bens e de cuja atuação todos recebiam alimento, teto, roupa e meios de poupança, na medida da situação e da cooperação de cada qual.
E, como as relações de trabalho, quando bem entendidas, não ficam só em seu âmbito mais restrito, mas naturalmente criam compreensão, estima e mútuo apoio nas várias necessidades da vida, a harmonia entre o fazendeiro e o colono criava, freqüentemente, o hábito de este se aconselhar com aquele, recebendo proteção e amparo nos mais diversos assuntos; como, de outro lado, gerava no trabalhador uma dedicação por vezes heróica a seu patrão. É este um dos mais típicos e luminosos elementos de nossa tradição em matéria de relações de trabalho.
A nítida consciência, na opinião pública, dessa íntima e profunda conjugação de esforços e de interesses, manteve-se por muito tempo em nosso País e, mercê de Deus, ainda em larga medida existe. Era e é um dos melhores títulos do fazendeiro à estima geral.
A história de nossas velhas estirpes de proprietários rurais vem de muito antes da época cujo quadro há pouco traçamos. É a história de uma ascensão. Nascida espontaneamente das profundezas da ordem natural das coisas, a propriedade agrícola deu origem entre nós a uma elite social que foi, de início, composta de desbravadores valentes e dinâmicos, a que sucederam gerações de agricultores fixados em suas glebas e postos em luta constante com a natureza bravia do sertão. Aos poucos, a rudeza da terra se foi atenuando, uma tradição agrícola sempre mais completa foi estabelecendo os métodos de trabalho, os sistemas de plantio e a rotina judiciosa e eficiente das atividades rurais. O agricultor ia, com isto, ficando menos absorvido pelas suas funções. Ao mesmo tempo, as cidades se iam multiplicando e as comunicações com o Velho Mundo se iam tornando mais seguras e rápidas. Firme na base econômica que seu trabalho e o de seus maiores lhe haviam formado, o fazendeiro sentia em si a consciência de que a simples posse de um patrimônio não basta para criar uma elite digna desse nome. Da tradição luso-brasileira, marcada a fundo pela influência cristã, herdara ele valores de alma inestimáveis, que cumpria polir e acrescer no convívio com os centros urbanos do Brasil e do Exterior.
Daí o aparecimento do agricultor meio citadino, no espírito e nas maneiras. Morava ele de bom grado, durante certa parte do ano, na cidade, e não raro frequentava a Corte e viajava para a Europa. Mas dedicava gostosamente a outra parte do ano à vida rural, no contato efetivo e natural com os homens e as coisas do campo.
Sem perder suas raízes na terra, essa elite crescia assim, gradualmente, em instrução, cultura e distinção de maneiras. Por esta forma ela se capacitava para – fiel embora a seu cunho agrícola – fornecer à Nação grande número de intelectuais, de comerciantes, de industriais, de estadistas, de homens e de damas de sociedade, que tanto valor e tanto realce deram à nossa vida política, cultural e social.
Enquanto o fazendeiro, assim transformado, ampliava seu raio de ação em benefício do País, por isto mesmo que não deixara de ser fazendeiro continuava contribuindo para nosso progresso agrícola. A área plantada, o número de famílias vivendo do trabalho na lavoura, o volume da produção e da exportação iam crescendo. E graças às riquezas assim acumuladas, firmava-se no exterior o nosso crédito, e as importações, sem perturbarem nossa balança comercial, iam pari passu avultando. Por esta forma o Brasil, outrora atrasado e sem recursos, se ia apetrechando e adornando com todos os produtos do mundo civilizado.
A lavoura era, por esta forma, a base da prosperidade nacional. O impulso que ela deu ao País se tornou notório ao mundo inteiro. Daí veio a reputação de terra da fartura que o Brasil começou a ter já desde os fins do século XIX. Éramos, com os Estados Unidos e a Argentina, a Canaã para a qual afluíam, cheias de esperança e de dinamismo, as multidões da Europa, do Oriente Próximo e do Extremo Oriente.
(REFORMA AGRÁRIA – QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA – Ed. Vera Cruz – SP – 1960)