Capítulo I
Numa viagem de comboio a ordem normal consiste em que o maquinista e os passageiros ocupem os respectivos lugares, o revisor dê o sinal da partida e o comboio se ponha em movimento.
Assim também, num trabalho intelectual, o início consiste em expor os princípios preliminares, justificá-los criteriologicamente quando necessário, e depois passar para o corpo da doutrina.
Porém, quando a psicologia de muitos leitores parece estar prevenida contra a matéria a ser tratada, ou até com preconceitos muito enraizados a respeito dela, a situação é como a de um maquinista que—tendo já os passageiros ocupado os seus lugares—percebe que os carris estão entulhados de obstáculos.
O esforço da viagem começa, então, não com a partida do comboio, mas com a remoção prévia desses obstáculos. Pois só após este procedimento é que ela pode ter lugar.
Analogamente, na matéria a ser tratada na presente obra, os obstáculos são tantos—ou seja, os preconceitos que lotam a mentalidade de numerosos leitores a respeito da nobreza e das elites tradicionais análogas—que o assunto só pode ser tratado após a remoção dos mesmos.
Fica assim explicado o que poderia haver de estranho ou de pouco usual no título e no conteúdo deste primeiro capítulo.
1. Sem prejuízo de uma justa e ampla acção em prol dos trabalhadores, oportuna actuação a favor das elites
Não é necessário recordar que, hoje em dia, se fala muito de reivindicações sociais a favor dos trabalhadores. A solicitude assim manifestada é, em princípio, altamente louvável e digna de ser apoiada por todos os espíritos rectos.
Entretanto, insistir unilateralmente em prol da classe dos trabalhadores, sem tomar em consideração os problemas e as necessidades de outras classes, por vezes cruelmente atingidas pela grande crise contemporânea, importa em esquecer que a sociedade se compõe de diferentes classes, com funções, direitos e deveres específicos; e que não consta só de trabalhadores manuais. A formação, no mundo inteiro, de uma só sociedade sem classes é uma utopia que tem sido o tema invariável dos sucessivos movimentos igualitários eclodidos na Europa cristã a partir do século XV. E, nos nossos dias, é ela apregoada principalmente por socialistas, comunistas e anarquistas (1).

A TFP norteamericana passa em frente do Supremo Tribunal durante a March For Life em Washington, 24 de janeiro de 2011
As TFPs e Bureaux-TFP difundidos pela Europa, pelas três Américas, Oceania, Ásia e África são muito favoráveis a todas as melhorias cabíveis para a classe dos trabalhadores; porém, não podem fazer sua a ideia de que tais melhorias impliquem no desaparecimento das outras classes, ou num minguamento tal do significado delas, dos seus deveres, direitos e funções específicas em favor do bem comum, que equivaleria à sua virtual extinção. Empenhar-se em resolver a questão social, achatando todas as classes em ilusório benefício de uma só, importa em provocar uma autêntica luta de classes, já que suprimi-las todas em benefício exclusivo da ditadura de uma só delas—o proletariado—importa em reduzir as outras classes à alternativa de aceitar a legítima defesa ou a morte.
Não se pode esperar das TFPs que concordem com este processo de achatamento social. Pois, em contraposição aos propugnadores da luta de classes – e colaborando com as múltiplas iniciativas que hoje se desenvolvem em prol da paz social, por meio do justo e necessário favorecimento dos trabalhadores – é mister que todos os nossos contemporâneos bem orientados desenvolvam uma acção em prol da ordem social, ao contrário da acção socialista ou comunista voltada para a tensão e por fim para a deflagração da luta de classes.
A ordem social, para existir, tem como condição que a cada classe seja reconhecido o direito àquilo que lhe cabe para subsistir com dignidade. E que cada uma, respeitada nos seus direitos específicos, se ache habilitada a cumprir os deveres que lhe competem em ordem ao bem comum.
Noutros termos, é indispensável que a acção em benefício dos operários se conjugue com uma simétrica actuação a favor das elites.
Se a Igreja se interessa pela questão social, não é porque ame só o operariado. Ela não é um Labour Party fundado para proteger uma só classe. Ela ama, mais do que as diversas classes—considerada cada uma isoladamente e sem nexo com as outras—a justiça e a caridade, que Ela se empenha em fazer reinar entre os homens. E por isto ama todas as classes sociais… inclusive a nobreza, tão combatida pela demagogia igualitária (2).
Estas ponderações levam naturalmente ao tema do presente livro.
É facto que, de um lado, Pio XII reconhece à nobreza uma importante e peculiar missão no conjunto da sociedade contemporânea, missão esta que, como adiante se comentará, toca analogamente, em considerável medida, a outras elites sociais.

O Soberano Pontífice fá-lo nas catorze alocuções magistrais pronunciadas nas audiências de felicitações pelo Ano Novo, concedidas ao Patriciado e à Nobreza romana, nos anos de 1940 a 1952, e novamente em 1958 (3).
Por outro lado, ninguém ignora a ingente e multiforme ofensiva que se move em todo o mundo contemporâneo para o minguamento e a extinção da nobreza como das outras elites. Basta constatar a avassaladora pressão, que por toda a parte se exerce, no sentido de fazer abstracção, contestar ou diminuir de maneira incessante o papel delas.
Nalguma medida, pois, a actuação a favor da nobreza e das elites é hoje mais oportuna do que nunca. Cabe, assim, formular com sereno destemor a seguinte afirmação: na nossa época, na qual tão necessária se tornou a opção preferencial pelos pobres, também se faz indispensável uma opção preferencial pelos nobres, desde que incluídas nesta expressão também outras elites tradicionais expostas ao risco de desaparecimento e dignas de apoio.
A afirmação poderá parecer absurda, dado que, em tese, a condição operária é mais próxima da pobreza do que a condição nobiliárquica, e que é notória a existência de muitos nobres dotados de grandes fortunas.
De grandes fortunas, por vezes, sim. Mas corroídas em geral por uma perseguição tributária implacável, que nos põe continuamente diante dos olhos o espectáculo consternador de senhores obrigados a transformar uma boa parte dos respectivos solares ou casas senhoriais em hotéis ou residências turísticas, ocupando eles próprios tão-só uma parte da mansão familiar. Ou de solares em que o senhor serve ao mesmo tempo de conservador e de cicerone—quando não de barman— enquanto a sua esposa se ocupa afanosamente de trabalhos por vezes não distantes da condição servil, a fim de manter limpa e apresentável a casa dos seus maiores.
Contra tal perseguição—que se reveste, aliás, de outras formas, como aconteceu com a extinção dos morgadios e a partilha compulsória das heranças—não cabe uma opção preferencial a favor dos nobres?
Não, se a nobreza for necessariamente tida em conta de uma classe parasitária de dilapidadores dos próprios bens. Mas esta imagem da nobreza, que faz parte da legenda negra da Revolução Francesa e das que se lhe seguiram na Europa e no mundo, Pio XII rejeitou-a. Embora afirme claramente que têm ocorrido nos meios da nobreza abusos e excessos, dignos de severa censura da parte da História, descreve ele, em termos comovidos, a consonância da missão da nobreza com a ordem natural das coisas, instituída pelo próprio Deus, bem como o carácter elevado e benfazejo dessa missão (4).
2. Nobreza: espécie dentro do género elites tradicionais
Aparecerá com frequência, na presente obra, a expressão elites tradicionais. Com ela designa-se uma realidade sócio-económica que pode ser descrita como segue.
Segundo os textos pontifícios adiante comentados, sob todos os pontos de vista a nobreza constitui uma elite. A mais alta delas. Mas, por certo, não é ela a única elite. No género elites, ela é uma espécie.
Há elites que o são por participarem das funções e dos traços específicos da nobreza; e outras há que desempenham funções diversas no corpo social, mas que não deixam de ter por isso uma dignidade peculiar.
Há, pois, elites que não são nobiliárquicas nem hereditárias ex natura propria.
Assim, por exemplo, a condição de professor universitário incorpora os seus titulares, em plena justiça, ao que se pode chamar a elite de uma Nação. O mesmo ocorre com a condição de militar, de diplomata, e outras congéneres.
Esses vários ramos da actividade humana, como já foi dito, não constituem hoje privilégio da nobreza. Porém, não poucos são os nobres que a eles se dedicam. E a ninguém ocorre que, fazendo-o, esses nobres decaem ipso facto da sua condição. Pelo contrário, o exercício dessas actividades dá facilmente ocasião a que o nobre marque nelas a sua actuação com a excelência dos predicados específicos da nobreza (5).
Nesta enumeração das elites não se devem esquecer aquelas que propulsionam a vida económica de uma Nação, na indústria e no comércio. Estas funções não só são lícitas e dignas, mas também de uma evidente utilidade. Contudo, a meta imediata e específica de tais profissões é o enriquecimento de quem as exerce. Ou seja, é só enriquecendo-se a si mesmos que, ipso facto e por uma consequência colateral, enriquecem a Nação. E isto não basta por si só para dotar de algum carácter de nobreza esses profissionais. Com efeito, é indispensável um especial devotamento ao bem comum—e notadamente ao que este tem de mais precioso, que é o cunho cristão da Civilização—para conferir algum luzimento nobiliárquico a uma elite. Porém, quando as circunstâncias proporcionam a industriais ou comerciantes a ocasião de prestar ao bem comum serviços notáveis, com sacrifício relevante de interesses pessoais legítimos – e sempre que tais serviços são prestados efectivamente – esse luzimento também refulge em quantos tenham desenvolvido com a correspondente elevação de espírito a sua actividade comercial ou industrial.
Mais ainda. Se, por feliz conjunção de circunstâncias, numa família não nobre, uma mesma linhagem exerce, ao longo de várias gerações, alguma destas actividades, este próprio facto bem pode ser tido como suficiente para elevar tal linhagem à condição de nobre.
Algo disto passou-se com a nobreza veneziana, constituída habitualmente de comerciantes. Como esta classe exerceu o governo da Sereníssima República, e assim teve em mãos o próprio bem comum daquele Estado e o elevou à condição de potência internacional, não causa surpresa que tais comerciantes tenham acedido à condição de nobres. E isto de maneira tão efectiva e autêntica que assumiram todo o alto tonus de cultura e maneiras da melhor nobreza militar e feudal.
Há, por outro lado, elites tradicionais fundadas, já nos seus primórdios, em capacidades e virtudes cuja transmissibilidade através da continuidade genética, ou do ambiente e educação familiares é patente (6).
Quando tal transmissibilidade manifesta os seus efeitos e, em consequência, se constituem famílias—não raramente até, vastos conjuntos de famílias—que de geração em geração se destacam pelos seus assinalados serviços ao bem comum, surge assim uma elite tradicional.
Esta alia assim, à condição de elite, o valioso predicado de ser tradicional. E, muitas vezes, só não se constitui como classe formalmente nobre pelo mero facto de que a legislação, em vários países, influenciada pelas doutrinas da Revolução Francesa, veda ao poder público a outorga de títulos de nobreza. É este o caso, não só de certos países europeus, como o dos países do Continente americano.
Isto não obstante, os ensinamentos pontifícios sobre a nobreza são em larga medida aplicáveis a essas elites tradicionais, por força da analogia das situações. Daí a importância e a actualidade desses ensinamentos pontifícios também para aqueles que, portadores de autênticas e elevadas tradições familiares, não são adornados por um título de nobreza. Mas aos quais incumbe, nos respectivos países, uma nobre missão a favor do bem comum e da Civilização Cristã.
Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer das elites não tradicionais, na medida em que se vão tornando tradicionais.
3. Objecções antinobiliárquicas, impregnadas do espírito igualitário da Revolução Francesa
Nobreza, elites: porque é que, neste livro, só se cuida delas? Tal é a objecção que, sem dúvida, ocorrerá a leitores igualitários, com mentalidade ipso facto antinobiliárquica.
A sociedade hodierna está saturada de preconceitos radicalmente igualitários, acolhidos consciente ou subconscientemente, às vezes até por pessoas que participam de sectores de opinião dos quais se poderia esperar uma compacta unanimidade no sentido oposto. Assim é, por exemplo, o caso dos clérigos entusiastas da trilogia revolucionária Liberdade-Igualdade-Fraternidade, e por isto mesmo descuidados de que ela era então interpretada num sentido frontalmente oposto à doutrina católica (7).
Se tais dissonâncias igualitárias se encontram até em certos meios do clero, não é de surpreender tanto que se manifestem também entre nobres ou membros de outras elites tradicionais. Transcorrido há pouco o segundo centenário da Revolução Francesa, estas reflexões fazem lembrar facilmente o nobre revolucionário por excelência que foi o Duque de Orleães, Philippe Égalité. De então para cá, o seu exemplo não tem deixado de frutificar em mais de uma estirpe ilustre.
Quando, em 1891, Leão XIII publicou a célebre Encíclica Rerum novarum sobre a condição do mundo operário, não faltou quem objectasse, em certos ambientes capitalistas, que as relações entre capital e trabalho constituem matéria especificamente económica, pelo que nada tinha a ver com ela o Romano Pontífice. A sua Encíclica constituiria, pois, uma incursão indébita em seara alheia…
Não faltarão leitores que, por sua vez, se perguntem o que tem a ver um Papa com a nobreza ou com as elites, tradicionais ou não. A simples subsistência destas, nos nossos tão transformados dias, parecer-lhes-á uma excrescência arcaica e inútil do mundo feudal. Nesta perspectiva, a nobreza e as elites contemporâneas não passariam de um ponto de fixação, e até de irradiação, de maneiras de pensar, de sentir e de agir que o homem de hoje não aprecia, e que já nem sequer entende. Os poucos que ainda lhes dão valor, seriam inspirados por fátuos sentimentos meramente estéticos ou poéticos. E os que ainda se sentem realçados, por delas serem partícipes, seriam vítimas de mero sentimento de orgulho e vaidade. Nada, porém, impedirá – pensarão leitores tais – que o curso implacável da evolução histórica acabe por limpar inteiramente da face da terra essas excrescências obsoletas. E se Pio XII não ajudou o curso da História—assim entendido—cabia-lhe pelo menos não lhe erguer obstáculo.

O Papa Pio XII recebe em audiência o Primeiro Secretário da Câmara dos Deputados do Brasil, sr. José Bonifácio Lafayette de Andrada acompanhado da família
A que propósito, pois, Pio XII tratou tão amplamente deste assunto num sentido que visivelmente agrada a espíritos contra-revolucionários como o de quem aqui coligiu os seus ensinamentos sobre a matéria, os anotou e agora os oferece à publicidade? Não teria sido melhor que o Pontífice se tivesse calado?
A resposta a estas objecções igualitárias, impregnadas do velho espírito de 1789, é simples. Quem a queira conhecer, nada melhor poderá fazer do que ouvi-la dos próprios lábios autorizados daquele Pontífice. Com poder de síntese notável, indica ele, nas suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana, como adiante se verá (8), o profundo sentido moral da sua interferência nesta matéria. Também realça ele o papel legítimo da nobreza, numa doutrina social inspirada no Direito Natural bem como na Revelação. Ao mesmo tempo, mostra todas as riquezas de alma que, no passado cristão, se tornaram características da nobreza, e assevera que esta última continua guardiã de tais riquezas, acrescentando que lhe toca a elevada missão de afirmá-las e de irradiá-las no mundo contemporâneo. Isto, até mesmo quando a acção devastadora das revoluções ideológicas, das guerras mundiais e das crises sócio-económicas hajam reduzido muitos nobres in concreto a uma condição modesta. A estes, lembra o Pontífice, em mais de uma passagem e de modo altamente honroso, a analogia da situação deles com a de S. José, Príncipe da Casa de David, entretanto modesto carpinteiro, mas acima de tudo pai legal do Verbo Encarnado e casto esposo da Rainha de todos os Anjos e de todos os Santos (9).
4. Os ensinamentos de Pio XII: escudo valioso perante os opositores da nobreza
Não é impossível que alguns leitores pertencentes à nobreza se perguntem que proveito lhes pode trazer a leitura do presente estudo. Com efeito —pensarão—a maior parte desses ensinamentos já não os haviam recebido no ambiente venerável do lar paterno, rico em tradições de alto sentido formativo e moral? Já não os haviam eles praticado ao longo de toda a vida, com os olhos postos no saudoso exemplo dos seus antepassados?

Da. Francisca Portocarrero Palafox (futura Duquesa de Alba) com sua irmã, Da. Eugénia (a futura imperatriz), e sua mãe, Da. Maria Manuela Kirkpatrick.
É bem verdade que talvez não lhes estivesse tão clara no espírito a inapreciável raiz religiosa desses deveres, nem a sua fundamentação nos documentos pontifícios. Porém—perguntarão eles ainda—no que lhes traz verdadeiro enriquecimento de alma conhecer tudo isso, se o que guardavam como precioso legado doméstico lhes vem bastando para dar à própria vida uma orientação a um tempo genuinamente aristocrática e genuinamente cristã?
Um aristocrata que, alegando tais motivos, julgasse inútil o estudo dos imperecíveis documentos de Pio XII sobre a Nobreza romana—tão aplicáveis a toda a nobreza europeia—daria mostras de superficialidade, tanto de espírito como de formação religiosa.
A integridade moral do católico, ou se funda no conhecimento lúcido e amoroso dos ensinamentos da Igreja e na enraizada adesão a estes, ou é falha de base séria. Pelo que está exposta a ruir de um momento para outro, máxime nos dias conturbados e saturados de incitamentos ao pecado e à revolução social da actual sociedade pós-cristã.
Contra as seduções e as pressões dessa sociedade, a suave e profunda influência da formação doméstica não basta, a não ser que se esteie nos ensinamentos da Fé e na observância efectiva dos Mandamentos, como na prática assídua dos deveres de piedade e no recurso frequente aos Sacramentos.

"É necessariamente de grande alento para o verdadeiro aristocrata católico saber que o seu modo tradicional de pensar, de sentir e de agir, precisamente enquanto aristocrata, encontra base ampla e firme nos ensinamentos do Vigário de Cristo."
Dentro desta perspectiva, é necessariamente de grande alento para o verdadeiro aristocrata católico saber que o seu modo tradicional de pensar, de sentir e de agir, precisamente enquanto aristocrata, encontra base ampla e firme nos ensinamentos do Vigário de Cristo. E isto tanto mais é certo quanto o nobre, nos dias de democratismo neopagão em que vive, fica sujeito a incompreensões, objecções e até sarcasmos, por vezes de tal maneira insistentes que poderá sentir-se exposto à tentação de uma vil vergonha de ser nobre. De onde facilmente lhe nascerá a esperança de se subtrair a essa situação incómoda, mediante o abandono tácito ou expresso da sua condição nobiliárquica.
Os ensinamentos de Pio XII sobre a matéria, aqui publicados e comentados, servir-lhe-ão, em tal emergência, de escudo valiosíssimo perante adversários obstinados da nobreza. Pois estes são obrigados a reconhecer que o nobre assim fiel a si mesmo, à Fé e às suas tradições, não é um extravagante que lucubrou por conta própria as convicções e o estilo de vida que o caracterizam. Tudo isto procede nele de uma fonte imensamente mais alta, de uma inspiração também imensamente mais universal, que é o ensinamento tradicional da Igreja Católica.
Tal ensinamento, é possível que os opositores da nobreza o odeiem. Porém não lhes é possível rebaixá-lo à simples categoria de lucubração individual de um esquisitão, de um paladino quixotesco daquilo que foi e não pode mais ser.
Isto tudo poderá não persuadir o objectante, mas impõe à sua ofensiva um minguamento de desenvoltura e força de impacto, dialecticamente muito vantajoso para quem faça a apologia da nobreza e das elites tradicionais.
Sobretudo é isto verdade se o detractor da classe nobre for um católico ou—pro dolor!—um sacerdote.
Na crise trágica em que se debate a Igreja (10)—à qual Paulo VI alude empregando a expressão “autodemolição” e afirmando ter a sensação de que a “fumaça de Satanás penetrou no templo de Deus” (11)—não é difícil que tal aconteça. E que uma ofensiva contra a nobreza, como contra outras elites tradicionais, e até não tradicionais, pretenda estribar-se em trechos das Sagradas Escrituras. Em tais situações, para o nobre, como para o membro de qualquer dessas outras elites, é de grande alcance apoiar-se no ensinamento de Pio XII como dos seus antecessores e sucessores, colocando o opositor na dura contingência de confessar o seu erro, ou de se afirmar em expressa contradição com os ensinamentos pontifícios alegados nesta obra.
5. Noções intuitivas e implícitas não bastam—riqueza de conceitos com que Pio XII tratou do assunto
Fez-se referência há pouco a objecções das quais é alvo, nos nossos dias, a instituição nobiliárquica, e às respostas que aos nobres cabe ter prontas e afiadas em defesa dela.
Na realidade, aos que discutem a favor e contra a nobreza não falta uma tal ou qual noção intuitiva e difusa do que esta proclama ser, em vista da sua mesma essência, da sua razão constitutiva e da sua fidelidade à Civilização Cristã. Porém, meras noções intuitivas deste género, habitualmente mais implícitas do que explícitas, não bastam como matéria-prima para uma discussão séria e concludente com os opositores. De onde a habitual esterilidade de tantas controvérsias sobre o tema.
Aliás, acrescente-se que a bibliografia contrária à nobreza é muito mais abundante e fácil de encontrar do que a existente a favor dela. Isto explica, pelo menos em parte, que os propugnadores da nobreza sejam frequentemente menos informados sobre a matéria. E, por isso, mostram-se mais inseguros e tímidos do que os seus contendores.
Os aspectos principais de uma actualizada apologia da nobreza e das elites tradicionais são versados pelo inesquecível Pontífice Pio XII nas suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana, com a elevação de vistas, a riqueza de conceitos e a concisão de linguagem que o leitor poderá apreciar.
Tal constitui um motivo a mais para tornar útil e oportuno o conhecimento da presente obra.
6. Alocuções de pura cortesia social, vazias de conteúdo, de pensamento e de afecto?
Provavelmente haverá quem, com evidente frivolidade, se afirme dispensado de ler e ponderar as alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, alegando serem documentos de exclusiva cortesia social, sem qualquer conteúdo doutrinário ou afectivo.

"Queremos crer que o eco daquelas palavras, como o vento que enfuna uma vela, .... vibre ainda nos vossos ânimos para enchê-los daqueles austeros e magnânimos apelos nos quais se alimenta a vocação, apontada à vossa vida pela Providência, e se sustenta a função ainda reclamada pela sociedade contemporânea, no que vos diz respeito" -- Paulo VI falando ao Patriciado e à Nobreza romana em 1964.
Muito diverso foi o juízo de Paulo VI a tal respeito: “Queremos dizer-vos tantas coisas. A vossa presença suscita tantas reflexões. Assim era também para os Nossos venerados Predecessores—para o Papa Pio XII, de feliz memória, especialmente—os quais, em ocasiões como esta, vos dirigiram discursos magistrais, que convidavam a vossa meditação a considerar, à luz dos seus admiráveis ensinamentos, seja as condições da vossa situação, seja as do nosso tempo. Queremos crer que o eco daquelas palavras, como o vento que enfuna uma vela, …. vibre ainda nos vossos ânimos para enchê-los daqueles austeros e magnânimos apelos nos quais se alimenta a vocação, apontada à vossa vida pela Providência, e se sustenta a função ainda reclamada pela sociedade contemporânea, no que vos diz respeito” (12).
Aliás, quanto ao seu conteúdo doutrinário, a mera leitura dos textos dessas alocuções, e dos comentários que as acompanham, far-lhes-á ver toda a oportunidade e as múltiplas riquezas que elas contêm. Ao longo destas páginas saltará aos olhos do leitor que tal oportunidade, longe de esmaecer-se com o tempo, pelo contrário não fez senão acentuar-se.

"...sereis testemunhas não só da Nossa estima e do Nosso afecto, mas também da verdade, fundamento e oportunidade das Nossas recomendações..."
Resta dizer alguma coisa sobre o conteúdo afectivo das mesmas alocuções. A tal respeito, basta mencionar estas palavras dirigidas por Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana no seu discurso de 1958:
“Vós que, ao início de cada Ano Novo, não deixáveis de visitar-Nos, recordais certamente a férvida solicitude com que Nos empenhamos em traçar-vos o caminho do futuro, que se mostrava já então árduo, em razão das profundas convulsões e transformações que ameaçavam o mundo. Estamos certos, portanto, que vós, mesmo quando as vossas frontes estiverem emolduradas de neve e de prata, sereis testemunhas não só da Nossa estima e do Nosso afecto, mas também da verdade, fundamento e oportunidade das Nossas recomendações, como dos frutos que delas queremos esperar para vós mesmos e para a sociedade. Recordareis particularmente aos vossos filhos e netos como o Papa da vossa infância e juventude não se omitiu de indicar-vos os novos encargos impostos à Nobreza pelas novas condições dos tempos” (13).
Estas palavras deixam ver, sem qualquer dúvida, que as alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana obedeciam a altos desígnios, claramente definidos na mente e no coração do Pontífice. Deixam ver também a importância e durabilidade dos frutos que delas esperava. O contrário, pois, do que seriam alocuções de pura cortesia social, vazias de conteúdo, de pensamento e de afecto.
O apreço de Pio XII pela nobreza hereditária ressalta ainda com peculiar brilho nas seguintes palavras dirigidas à Guarda Nobre Pontifícia em 26 de Dezembro de 1942:
“Ninguém poderia mostrar-se enciumado por vos dispensarmos especial afecto. A quem, na verdade, está confiada a guarda imediata da Nossa Pessoa senão a vós? E não formais vós a primeira das Nossas Guardas?

"Guarda! Altaneira ressonância tem esta palavra....Tão selecta tradição de virtudes familiares, assim como no passado se transmitiu de pai a filho, continuará, disto não temos dúvida, a transmitir-se de geração em geração, como um património de grandeza de alma e de nobilíssima ufania da respectiva estirpe".
“Guarda! Altaneira ressonância tem esta palavra: ela desperta um frémito na alma, inflama o pensamento. Neste nome vibram e falam um amor ardente pelo Soberano, um acatamento indefectível à sua pessoa e à sua causa; ele põe em vibração uma generosidade a toda a prova, uma constância e uma coragem invicta nos riscos enfrentados a seu serviço e para a sua defesa; falam as virtudes que, se de um lado plasmam o campeão, de outro lado suscitam, no Soberano, para com a sua Guarda, apreço, afecto e confiança.
“Vós, Guarda da Nossa pessoa, sede a Nossa couraça, refulgente daquela Nobreza que é privilégio de sangue, e que já antes da vossa admissão ao Corpo resplandecia em vós como penhor do vosso devotamento, porque, segundo o antigo provérbio, `bom sangue não pode mentir’. Vida é o sangue que se transmite de grau em grau, de geração em geração, nas vossas ilustres linhagens e leva consigo o fogo daquele amor devotado à Igreja e ao Romano Pontífice, que não diminui nem arrefece com o mudar dos acontecimentos, alegres ou tristes. Nas horas mais obscuras da história dos Papas, a fidelidade dos vossos antepassados refulgiu mais esplêndida e patente, mais generosa e cálida do que nas horas luminosas de magnificência e de prosperidade material. …. Tão selecta tradição de virtudes familiares, assim como no passado se transmitiu de pai a filho, continuará, disto não temos dúvida, a transmitir-se de geração em geração, como um património de grandeza de alma e de nobilíssima ufania da respectiva estirpe” (14).
7. Documentos de valor permanente
Mas—dirá, por fim, alguém—depois de Pio XII inaugurou-se para a Igreja uma outra era, a do Concílio Vaticano II. Todas as alocuções do falecido Pontífice dirigidas ao Patriciado e à Nobreza romana caíram como folhas mortas no chão da Igreja. E os Papas conciliares e pós-conciliares não voltaram a tratar do assunto.
Também isto não é verdade. E, para prová-lo, são mencionados neste trabalho, argumentandi gratia, expressivos documentos de sucessores do pranteado Pontífice (15).
Resta, pois, passar ao estudo das alocuções de Pio XII, em foco, ressaltando-lhes o magnífico cabedal doutrinário.
NOTAS:
(1) Cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, Diário das Leis, São Paulo, 2ª ed., 1982, pp. 18, 30-33.
(2) Cfr. Capítulo IV, 8; Capítulo V, 6.
(3) O Patriciado romano subdividia-se em duas categorias:
a) Patrícios romanos, que descendiam daqueles que, na Idade Média, haviam ocupado cargos civis de governo na Cidade Pontifícia;
b) Patrícios romanos conscritos, os quais pertenciam a alguma das 60 famílias que o Soberano Pontífice havia reconhecido como tais numa Bula Pontifícia especial, na qual eram citadas nominalmente. Constituíam o creme do Patriciado romano.
A Nobreza romana também se subdividia em duas categorias:
a) Os nobres que provinham dos feudatários, ou seja, das famílias que tinham recebido um feudo do Soberano Pontífice;
b) Os nobres simples, cuja nobreza provinha da atribuição de um cargo na Corte ou então directamente de uma concessão Pontifícia.
Das alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, as de 1952 e 1958 compendiavam tudo quanto o Pontífice dissera nas anteriores.
Em 1944 houve uma alocução extra, pronunciada em 11 de Julho, na qual Pio XII agradeceu a famílias da Nobreza de Roma a oferta de uma generosa soma em dinheiro para ajuda aos necessitados.
Entre 1953 e 1957, Pio XII não fez alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana. Reatou-as, mais tarde, ao pronunciar uma alocução em Janeiro de 1958. E faleceu no dia 9 de Outubro desse ano.
(4) Cfr. PNR 1943.
(5) Cfr. Capítulo IV, 3 e 7; Capítulo VI, 2 b.
(6) Cfr. Capítulo V, 2.
(7) Cfr. Capítulo III, 3 e 4; e também importantes excertos de Documentos Pontifícios esclarecedores do assunto no Apêndice II.
(8) Cfr. Capítulo I, 6.
(9) Cfr. Capítulo IV, 8; Capítulo V, 6.
(10) A bibliografia sobre este tema é vasta. Veja-se especialmente: VITTORIO MESSORI a colloquio con il cardinale JOSEPH RATZINGER, Rapporto sulla fede, Edizioni Paoline, Milano, 1985, 218 pp.; ROMANO AMERIO, Iota unum – Studio delle variazioni della Chiesa Cattolica nel secolo XX, Riccardo Ricciardi Editore, Milão-Nápoles, 1985, 656 pp.
A título de exemplo, mencionam-se aqui mais algumas obras referentes a essa crise: DIETRICH VON HILDEBRAND, Le cheval de Troie dans la cité de Dieu, Beauchesne, Paris, 1970, 239 pp.; Dr. RUDOLF GRABER, Bispo de Regensburg, Athanasius und die Kirche unserer Zeit, Verlag und Druck Joseph Kral, Abensber, 1973, 87 pp.; DIETRICH VON HILDEBRAND, Der verwüstete Weinberg, Verlag Joseph Habbel, Regensburg, 1973, 247 pp.; CORNELIO FABRO, L’avventura della teologia progressista, Rusconi Editore, Milano, 1974, 322 pp.; CORNELIO FABRO, La svolta antropologica di Karl Rahner, Rusconi Editore, Milano, 1974, 250 pp.; ANTON HOLZER, Vatikanum II – Reformkonzil oder Konstituante einer neuen Kirche, Saka, Basel, 1977, 352 pp.; WIGAND SIEBEL, Katholisch oder konziliar – Die Krise der Kirche heute, Langen Müller, München-Wien, 1978, 469 pp.; Cardinal JOSEPH SIRI, Gethsemani – Réflexions sur le mouvement théologique contemporain, Téqui, Paris, 1981, 384 pp.; ENRIQUE RUEDA, The Homosexual Network, The Devin Adair Company, Old Greenwich, Connecticut, 1982, 680 pp.; Prof. Dr. GEORG MAY, Der Glaube in der nachkonziliaren Kirche, Mediatrix Verlag, Wien, 1983, 271 pp.; RICHARD COWDEN-GUIDO, John Paul II and the Battle for Vatican II, Trinity Communications, Manassas, Virginia, 1986, 448 pp.
(11) “A Igreja atravessa hoje um momento de inquietude. Alguns se exercitam na autocrítica, dir-se-ia até na autodemolição. É como um revolvimento interior agudo e complexo que ninguém esperaria após o Concílio …. A Igreja é golpeada também por aqueles que dela fazem parte” (Discurso ao Pontifício Seminário Lombardo, 7/12/68, Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, 1968, vol. VI, p. 1188).
“Referindo-se à situação da Igreja de hoje o Santo Padre afirma ter a sensação de que `por alguma fissura penetrou a fumaça de Satanás no templo de Deus'” (Homilia “Resistite Fortes in Fide”, 29/6/72, Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, 1972, vol. X, p. 707).
(12) PNR 1964, p. 73.
(13) PNR 1958, p. 708.
(14) GNP 1942, pp. 349-350.
(15) Cfr. Capítulo I, 6; Capítulo IV, 11.