Um episódio da Abolição, a minha ida a Roma em começo de 1888, contarei aqui, porque será um elo em minha vida, um toque insensível de despertar para partes adormecidas de minha consciência.
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Roma estava repleta de peregrinos por causa do jubileu, no Vaticano o trabalho era enorme; apesar disso, consegui abrir caminho até o Santo Padre. Em 16 de fevereiro eu apresentava meu memorial ao Cardeal Rampolla. Hoje eu o teria redigido de outro modo, mas hoje não tenho mais o ardor do propagandista.
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Sua Santidade concedeu-me uma audiência particular. Dei conta dela no mesmo dia, escrevendo para O Pais… Dentre os papéis velhos que formam as parcelas de minha vida, a expressão é de uma carta do Imperador – outro papel velho que é para mim uma relíquia – este há de ser sempre um dos mais preciosos; a emoção que ele guarda não pode ser repetida; e é dessas que aumentam à medida que os anos se afastam… Por isso o reproduzo agora:
“Tive hoje a honra de ser recebido em audiência particular pelo Papa, e como essa audiência me foi concedida com relação ao assunto político que me fez vir a Roma, não devo demorar a reconstrução da conversa que tive com Sua Santidade e que eu trouxe do Vaticano taquigrafada, fotografada na memória. Foi uma insígne benevolência de Sua Santidade conceder-me tal audiência em um tempo em que cada um dos seus momentos está de antemão empenhado aos bispos, arcebispos, e católicos proeminentes, que lhe vêm trazer algum dom por ocasião de seu jubileu.
“O Papa está constantemente a receber numerosas deputações influentes de todas as partes do mundo e dirige-se sempre a elas com uma alocução animada. Esse acréscimo de trabalho às suas constantes ocupações de cada dia não deixa muito tempo de descanso ao Santo Padre, sobre quem os seus setenta e oito anos, juntos à majestade da tiara, começam a pesar; no entanto é nessas horas de repouso que Sua Santidade recebe individualmente os homens notáveis do mundo católico e conversa com eles largamente sobre o assunto pelo qual cada um se interessa..
“Eu, porém, era um desconhecido e não vinha trazer nada ao Papa, vinha só pedir-lhe; nenhum serviço tinha prestado nunca à Igreja, e a questão que me ocupava, exigia que Sua Santidade lesse antes uma série de documentos e fizesse alguma meditação sobre a grave resposta que me ia dar. Isto era um esforço, e, nas circunstâncias especiais do jubileu, a atenção a mim prestada pela mais alta de todas as individualidades humanas é um ato a que ligo ainda maior apreço e reconhecimento por saber que na minha humilde pessoa foi aos escravos do Brasil que Leão XIII quis acolher paternalmente e fazê-los chegar até ao seu augusto trono, como, simbolicamente, o mais elevado de todos os lugares de refúgio.
“O Papa recebe em audiência particular, sem testemunha alguma. Ninguém está na sala senão ele e a pessoa a quem a audiência é concedida. Em uma sala contígua está um secretário e um oficial da guarda, mas uma vez introduzido no pequeno salão, o visitante acha-se a portas fechadas em presença somente de Leão XIII. O Papa, que lia um livro de versos latinos quando fui anunciado, mandou que me assentasse numa cadeira ao lado da sua e perguntou-me em que língua devia falar-me. Eu preferi o francês.
“A impressão que senti todo o tempo da audiência, que não durou menos de três quartos de hora, não se parece com a sensação causada pela presença de um dos grandes soberanos do mundo. O trono brasileiro é uma exceção. Nunca no Brasil houve homem tão acessível como o Imperador, nem casa tão aberta como São Cristóvão. Mas os monarcas em geral são educados e crescem, porque a sua condição é superior à do resto dos homens, na crença de que são melhores do que a humanidade. A todas as vantagens do Papado como instituição monárquica, notavelmente a eletividade, é preciso acrescentar essa superioridade do Papa sobre os outros soberanos, que estes nascem, vivem e morrem no trono, e que os Papas só chegam à realeza nos últimos anos da vida, isto é, que vivem toda a vida como homens e no trono não fazem senão coroar a sua carreira. Esse caráter humano da realeza pontifícia é a condição principal de seu prestígio, assim como a eletividade é a condição da sua duração ilimitada e o espírito religioso a da sua seleção moral. Eu diria mesmo que a sós com o Papa a impressão é antes a do confessionário que a dos degraus do trono, se ao mesmo tempo não houvesse na franqueza e na reserva de Sua Santidade alguma coisa que exclui desde o princípio a idéia de que ali esteja o confessor interessado em descobrir o fundo da alma do seu interlocutor. A impressão dominante é, entretanto, de confiança absoluta, como se, entre aquelas quatro paredes, tudo o que se pudesse dizer ao Sumo Pontífice tomasse caráter de uma conversa íntima com Deus, de quem estivesse ali o intérprete e o medianeiro.
“As palavras que caíram dos lábios do Santo Padre gravaram-se-me na memória, e não creio que se apaguem mais, nem creio que eu deixe de ouvir a voz e o tom firme com que foram ditas. O Papa começou notando que ele me havia demorado muito em Roma, mas que eram numerosos os seus deveres nesse momento, ao que respondi que o meu tempo não podia ser melhor empregado do que em esperar a palavra de Sua Santidade.
[Joaquim Nabuco dá um relato de sua atuação política e diplomática em favor da abolição da escravatura]
“Sua Santidade respondeu: Ce que vous avez à coeur, l’Eglise aussi la à coeur.
(JOAQUIM NABUCO – Minha Formação)