Plinio Corrêa de Oliveira
Um fator de hostilidade contra as elites tradicionais está no preconceito revolucionário que qualquer desigualdade de berço é contrária à justiça. Admite-se habitualmente que um homem possa destacar-se pelo seu mérito pessoal. Näo se admite, porém, que o fato de proceder de uma estirpe ilustre seja para ele um título especial de honra e de influência. A este respeito, o Santo Padre Pio XII nos dá um precioso ensinamento:
“As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao nascimento, säo inevitáveis. A natureza benigna e a bênçäo de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, osculam-nos, porém näo os nivelam”(1)
Essa frase é magnífica. Deus ama todos os berços, mas näo os nivela. Ele ama todos os recém-nascidos, mas Sua bênçäo näo os iguala. Ele näo deseja que sejam iguais, Ele quer a desigualdade oriunda, inclusive, das diferenças de estirpe. É claro que tais desigualdades desejadas pelo Criador devem ser harmônicas e proporcionadas.
A frase do Pontífice é preciosa para quem empreende a defesa da nobreza do ponto de vista da religiäo católica, segundo o ensinamento da Igreja.
Por outro lado, a frase é muito prudente. Pio XII tem noçäo da força do preconceito que ele deve enfrentar e por isso quer deixar bem claro que Deus ama a todos. A frase é muito característica de carinho, mas no fundo afirma: näo nivela.
E mais adiante ele prossegue: “Uma mente instruída e educada de modo cristäo näo pode considerar tais desigualdades senäo como disposiçäo desejada por Deus, pela mesma razäo que Ele quis as desigualdades no interior da família, e portanto destinadas a unir mais os homens entre si na viagem da vida presente para a pátria celeste, uns ajudando os outros do mesmo modo que um pai ajuda a mäe e os filhos” (2).
Portanto, näo é possível considerar essas desigualdades de berço senäo como algo desejado por Deus.
Deus ama as desigualdades a tal ponto que na sociedade primeira, a mais elementar, que é a família, Ele a dispôs de tal maneira que ela é desigual por essência. E por isso mesmo a sociedade maior, que é um tecido de famílias, também é desigual. É nesse espírito familiar que as desigualdades devem existir.
O verdadeiro sentido do paternalismo
A glória cristä das elites tradicionais consiste em servir näo só à Igreja, mas também ao bem comum. A aristocracia pagä ufanava-se exclusivamente de sua ilustre progênie. A nobreza cristä acrescenta, a esse título, outro ainda mais alto: o de exercer uma funçäo paternal junto às outras classes. Exemplos típicos dessa aristocrática bondade de trato encontram-se em muitas famílias nobres, que sabem ser eximiamente bondosas para com seus subordinados, sem consentir de modo algum que seja negada ou aviltada sua natural superioridade.
Isto passou a ser denegrido pelos revolucionários como coisa vil, designada por um termo a que deram um falso sentido pejorativo: paternalismo.
Antes era prestigioso dizer que um diretor ou proprietário de fábrica exercia uma influência paterna sobre seus operários. Atualmente é considerado como algo sumamente rejeitável, pois, segundo o jargäo revolucionário, os operários têm seus direitos, näo por uma bondade paterna do proprietário, mas conquistados por sua força. Seria o mesmo dizer que os filhos nada recebem por amor e bondade do pai, mas porque têm seus direitos próprios.
Ora, segundo a tradiçäo católica, até os grandes homens que servem ao bem comum têm funçäo paterna. Eles säo os pais da pátria, os patrícios – como os denomina Pio XII neste sentido da palavra – que exercem dignamente seu papel de nobres defendendo o bem comum na guerra ou na paz, em todas as ocasiöes da vida.

A natureza benigna e a bênçäo de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, osculam-nos, porém näo os nivelam
Quando uma família é verdadeiramente católica, ela forma hábitos que só se alteram em condiçöes especiais, muito delicadas.
Assim, tende ela a permanecer morando na mesma casa durante várias geraçöes, com os retoques e adaptaçöes que se fizerem necessários. Mas essencialmente é a mesma casa. Do mesmo modo, os melhores objetos da residência säo mantidos na mesma família de geraçäo em geraçäo.
Na maneira de se tratarem e viverem, os membros de uma família väo formando hábitos, que säo uma expressäo da virtude existente na família. Tudo aquilo que adquire uma certa continuidade se prende à realidade por vínculos às vezes imperceptíveis, notados apenas quando há mudança e se percebe que foi errado mudar.
Porque continuar é algo análogo a viver e mudar é algo análogo a morrer. Assim como os hábitos sadios de uma família devem permanecer, também as leis justas de um país, salvo grave necessidade, näo devem ser mudadas. Porque alterá-las é contra a sabedoria, uma vez que a natureza é conservadora e procura conservar o mais possível todas as coisas.
Como ensina Santo Tomás de Aquino: “Só se modifica retamente a lei quando mediante esta mudança se contribui para o bem comum. Porém, a simples mudança de uma lei já é, em si mesma, um prejuízo para o bem comum” (Suma Teológica, I-II, q.97, a.2,c).
Portanto, tendo em vista o bem comum, só em circunstâncias muito graves se justifica a mudança de uma lei.
E continua o Doutor Angélico: “Porque o costume contribui muito para o cumprimento das leis, a tal ponto que se consideram graves todas as coisas estabelecidas contra os costumes, apesar de em si mesmas serem leves. Por isso, quando se modifica uma lei seu poder coativo fica diminuído, na medida em que impeça o costume”.
Assim, o costume contribui para o cumprimento de uma lei. Se uma lei antiga, venerável, que sempre se cumpriu, é abolida para ser instituída outra, a lei nova näo terá a seu favor o costume e poderá ser mal cumprida ou näo cumprida. Como o costume deita raízes no povo, a lei nova, pelo simples fato de ser nova, já nasce fraca, porque o costume está jogando sua força contra ela.
E conclui Santo Tomás: “Daí que näo se deva modificar a lei humana, a näo ser que, por outro lado, haja uma compensaçäo equivalente para o bem comum, correlativa à parte derrogada da lei. E isto acontece: ou porque da nova disposiçäo legal se tira um proveito muito grande e notório, ou em caso de extrema necessidade, ou porque a lei vigente continha manifesta iniqüidade e o seu cumprimento era sumamente nocivo. Por isso diz o Jurisconsulto que, tratando-se de estabelecer novas normas, a sua utilidade deve ser evidente, para que seja justificado o abandono daquilo que durante muito tempo foi considerado como eqüitativo”.
Portanto, para que o povo se resigne a uma lei nova, é preciso que a utilidade dessa mudança seja evidente, porque näo se tira o povo de um costume já estabelecido. Isto é tradiçäo.
Poder-se-ia objetar que este tema fica um pouco à margem da nobreza. Mas isto näo se dá. A nobreza, mais que as outras classes sociais, é a mantenedora dos costumes, das tradiçöes. Ela vive da tradiçäo, ela lembra um passado, e um passado que ela faz continuar no presente. Esta é a sua força.
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Nota (1) Alocuçäo ao Patriciado e à Nobreza romana em 5 de janeiro de 1942, Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, Tipografia Poliglotta Vaticana, pp. 345-349.
Nota (2) (Idem, ibidem)
Nota da redação:
Excertos de conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP em 23-11-1992, na capital paulista, comentando, a pedido destes, a obra de sua autoria Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana (Editora Civilização, Porto, 1992). Sem revisäo do autor.
(Revista “Catolicismo” – agosto 1998)
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