Episódios familiares da antiga “SãoPaulinho”, revelam a vocação da cidade para um auge grandioso, numa sociedade aristocrática impregnada pelos princípios da Igreja Católica e pelo perfume da civilização européia
Esta revista não poderia ficar alheia à comemoração dos 450 anos da fundação de São Paulo, pois faz parte de sua história. Com efeito, foi aqui que nasceu o grupo de católicos militantes de escol formado por Plinio Corrêa de Oliveira. Diretor de “O Legionário” durante mais de uma década, Dr. Plinio tornou-o conhecido por toda a elite religiosa do País. Esse mesmo grupo, enriquecido por nova geração de jovens católicos, em sua maioria ex-alunos do Colégio São Luís, veio a constituir o núcleo inicial de redatores de Catolicismo e, mais tarde, a direção da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP.
Entre esses jovens encontrava-se Eduardo de Barros Brotero, trineto do Conselheiro José Maria de Avelar Brotero, primeiro lente dos cursos jurídicos instituídos por Dom Pedro I em 1827. Tanto os descendentes do Conselheiro Brotero quanto os ancestrais de Dr. Eduardo pelo lado materno pertenceram àquela sociedade que Dr. Plinio chamou de “nobreza da terra”, em seu livro Nobreza e elites tradicionais análogas. Ele está, portanto, bem situado para transmitir aos nossos leitores algumas recordações significativas da antiga “SãoPaulinho”.
* * *
Catolicismo — Neste aniversário da cidade de São Paulo, como o Sr. vê a transformação da aldeia, onde jesuítas contemporâneos de Santo Inácio foram ensinar os índios, em uma das metrópoles mais populosas do mundo?
Dr. Eduardo de Barros Brotero — Como a própria pergunta salienta, essa transformação foi enorme. Ela pode ser considerada sob vários ângulos. Um dos mais interessantes seria do ponto de vista social. A primitiva aldeia, pela atuação do Pe. Manuel da Nóbrega e do Pe. José de Anchieta, tornou-se um centro cultural incipiente. Naquele tempo não havia estradas, apenas trilhas de índios e os rios — no caso, o Tietê — que conduziam ao interior. Podem-se imaginar as dificuldades: a mata virgem, os invernos úmidos, as feras, as doenças… Era uma vida rude que exigia muita fibra. E nossos pioneiros a tiveram.
Mas aos poucos a vila se foi civilizando. Em 1765, chegava de Portugal para governar a capitania D. Luís de Sousa Botelho Mourão, o morgado de Mateus — gloriosamente conhecido como defensor e benfeitor do Bem-aventurado Frei Galvão na fundação do Convento da Luz. Foi o Morgado de Mateus que imaginou, anos depois, o serviço postal terrestre entre São Paulo e o Rio de Janeiro: assim os paulistas podiam enviar suas cartas aos cariocas… seis vezes por ano!
O primeiro censo revelou então que a cidade tinha 20.873 habitantes. Durante muito tempo, a vida social na cidade caracterizou-se pela nota patriarcal marcada pela simplicidade e até certa rusticidade. No meio rural, essa nota perdurou até o século XX.
Catolicismo — Haveria exemplos?
![]() |
Dr. Eduardo — Sem dúvida. Meu trisavô, o Comendador Luiz Antonio de Souza Barros, possuía fazenda em Piracicaba, onde a família ia passar longas temporadas. Uma filha dele, minha bisavó, Da. Maria Paes de Barros, deixou memórias nas quais conta como eram feitas as viagens ao interior. Quando levavam crianças, as senhoras iam de bangüê — uma espécie de cabina de madeira, muito simples, carregada por quatro homens fortes a pé. Para ir a Campinas, a única hospedaria existente no caminho era a Estalagem da Ponte, situada à margem do rio Jundiaí. Minha bisavó a descreve e fala de seu proprietário: “o homem mais prazenteiro e popular”. Dizia que a maior parte dos viajantes, rumo ao interior, se acolhia à sua casa. Era conhecido como o Barão da Ponte. Quando lhe perguntavam por que decreto havia recebido o título, respondia, com a conhecida frase do Antigo Regime: “Pela unânime aclamação do clero, nobreza e povo!”.
Em seu livro, No tempo de dantes, essa minha bisavó narra: “Naquela noite na hospedaria, as meninas dormiam no chão e as manas acomodavam-se nas camas da alcova. Pela madrugada, a voz dos pajens pegando os animais e encilhando os cavalos vinha a todos despertar. Depois de pequena refeição, continuavam a jornada. Lá pela tarde a grande comitiva atravessava lentamente a cidade de Campinas, outrora pequena e silenciosa, com seus vastos casarões de fazendeiros ricos. Ao sair da cidade, passava-se pela vendinha situada à beira de um riacho. Se tivessem sido grandes as chuvas, a água transbordava, formando ali um grande lamaçal. Mau pedaço. Praguejavam os tocadores de bangüês. As senhoras, inquietas e medrosas, moviam-se cautelosamente para evitar os espirros de lama. Como a fazenda ficava a pequena distância da cidade, dali a pouco estavam chegados, a gozar do descanso e do prazer de se acharem em casa após tão longa viagem”.
Catolicismo — Era tudo tão difícil assim?
![]() |
Dr. Eduardo — Sim, mas já começava a se delinear uma tendência a aprimorar a maneira de viver. Favorecida pelo sucesso da cafeicultura, São Paulo progredia rapidamente, a tal ponto que, em 1877, a cidade ganhou seu primeiro palacete. Construiu-o Rafael Tobias de Aguiar Paes de Barros, segundo barão de Piracicaba e cunhado de minha bisavó. O primeiro palacete paulistano era o que podia haver de mais suntuoso. O sobrado, construído ainda com paredes muito grossas, possuía um sem número de salões, salas e saletas pintadas de cores diferentes ou revestidas de papel, com pisos trabalhados em madeira ou mármore, e que estavam ricamente mobiliados com os costumeiros móveis de madeira e palhinha, mas também com móveis estilo Luís XVI, segundo a descrição de uma neta dos Barões de Piracicaba. Que diferença com a estalagem da Ponte!
Catolicismo — Diferença colossal! Tais exemplos são tão ilustrativos daquela época, que pergunto se o Sr. teria outros fatos desse tempo.
Dr. Eduardo — Os fatos narrados por minha bisavó já revelam a preocupação com a decoração interior das casas. Ela narra episódios familiares mostrando como era despretensiosa a vida naquela São Paulo de uns 25 mil habitantes. Mas também como já brotava nas gerações mais novas a apetência de algo melhor, que teve seu auge na Belle Époque. É a conclusão de quem ouve ou lê descrições da sociedade que se reunia em palacetes como o dos Campos Elíseos, o de Dona Veridiana Prado (atual Clube São Paulo) ou o do Conde Penteado, entre outros. Para se ter uma idéia do tipo humano que essa sociedade destilou, seria preciso conhecer a esplêndida pintura de Dona Gabriela Ribeiro dos Santos, avó de Dr. Plinio. É um exemplo de senhorio, requinte e finura.
Catolicismo — Que outros fatores contribuíram para tal aprimoramento?
Dr. Eduardo — Para responder, recorro ao comentário — a meu ver, muito pertinente — de uma autora, Julita Scarano, no livro Memórias da gente paulista. Ela, estudando memórias da aristocracia do café, observa que os fazendeiros primavam em possuir belas moradas, tanto rurais como urbanas. Ela discerne mesmo “um momento de intensa europeização” em que se manifesta a idéia da França como modelo. “É a época em que o fausto e o luxo passam a ter imenso valor”, em contraste com anteriores gerações “de grande pobreza”. “O café propiciou toda essa nova riqueza, e o desejo de emular as ricas moradas francesas influenciou na escolha do mobiliário e de objetos de prata e de cristais”, conclui a autora, notando ainda como tais memórias, embora destaquem a simplicidade dos costumes, “não deixam de mencionar uma busca de enobrecimento e o desejo de ostentar costumes requintados”.
Trata-se portanto da busca de certa perfeição, de certo estilo de vida, um sonho de aprimoramento e requinte que veio como conseqüência da riqueza proporcionada, primeiro, pelo café; posteriormente, por uma indústria incipiente.
Catolicismo — O “sonho”, portanto, era de inspiração européia?
Dr. Eduardo — Sim. A vida paulistana era calma, pausada, cerimoniosa, muito influenciada pelo ambiente rural. O contato com a vida do campo em geral aguça o bom senso, mas pode embrutecer um tanto e acanhar os horizontes. A sociedade de São Paulo soube defender-se disso, haurindo o que havia de melhor da cultura européia. À medida que as famílias brasileiras foram se enriquecendo, passaram a enviar os filhos para estudar em Coimbra, Paris e outros lugares. Por outro lado, muitos europeus vieram para o Brasil: modistas, comerciantes, relojoeiros, médicos, engenheiros, etc.
Em determinado momento, as melhores famílias passaram a contratar governantas de origem francesa, alemã ou inglesa para educar seus filhos. Mas o gosto francês preponderou no estilo de vida e nas modas. Por exemplo, a Força Pública de São Paulo — hoje Polícia Militar — , como o Exército, teve formação militar francesa. A esse respeito, nada mais conclusivo que o comentário do chefe de governo francês Georges Clemenceau, depois de sua visita ao Brasil em 1911. Consta em suas Notes de Voyage dans l’Amérique du Sud – XIII, na revista francesa “l’Illustration”:
“A cidade de São Paulo é tão curiosamente francesa em alguns de seus aspectos, que durante toda uma semana não tive a sensação de me encontrar no estrangeiro. […] A sociedade paulista […] apresenta o duplo fenômeno de se orientar resolutamente para o espírito francês e de desenvolver paralelamente todos os traços de individualidade brasileira que determinam o seu caráter. Tende por certo que o paulista é paulista até o mais fundo de sua alma, paulista tanto no Brasil como na França ou em qualquer outro lugar”.
A influência francesa só desapareceu depois da I Guerra Mundial, quando o american way of life, difundido pelo cinema de Hollywood, triunfou em todo o Ocidente. Time is money triunfou sobre a douceur de vivre.
Catolicismo — Como se manifestava essa “doçura de viver”?
Dr. Eduardo — Ainda conheci confeitarias, salões de chá, casas de família, onde o ambiente, a culinária, a conversação, a gentileza lembravam a amenidade de outros tempos. Ouvi também muitos fatos na mesma linha, contados por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Nascido em 1908, ele conservava entre suas melhores recordações de infância os passeios ao Jardim da Luz e ao parque Antarctica, em companhia da irmã e de uma prima, sob a vigilância de uma governanta alemã. Nesses passeios, as crianças entregavam-se a toda sorte de distrações inocentes que culminavam nas delícias de uma confeitaria, se merecessem o prêmio pelo bom comportamento.
Por ocasião do Natal, sua mãe Da. Lucilia levava as crianças às lojas de presentes para escolherem o que iriam pedir. Duas lojas importavam brinquedos maravilhosos e muito formativos: a Casa Lebre e a Casa Fuchs. Encantadas com os brinquedos, as crianças indicavam facilmente os seus pendores. Os brinquedos e contos de fadas de então nada tinham a ver com os de hoje. Eram realmente belos e contribuíam para a formação do caráter.
A vida social, o teatro, as reuniões de família constituíam para os adultos a douceur de vivre. O Teatro Municipal, inspirado no Opéra de Paris e inaugurado em 1911, dá uma idéia do nível cultural do começo do século XX, em que toda pessoa de elite falava francês, inglês ou alemão. Ali se representavam as melhores óperas italianas ou peças clássicas da Comédie Française. Até a década de 1950 as apresentações de bom nível eram freqüentes. Depois escassearam.
Catolicismo — Aquela “SaoPaulinho” era uma cidade mais humana.
![]() |
Dr. Eduardo — Sobretudo, mais cristã, mais católica. Minha bisavó considerava a pequena São Paulo de sua infância “monótona, calma e simples, com hábitos um tanto feudais e aparência medieval”. O que ela chamou de “feudal” e “medieval”, talvez num sentido pejorativo, era no entanto uma realidade profunda, positiva. Porque essa sociedade que prezava o luxo ainda estava banhada de certa inocência. Por isso, mesmo os pobres e escravos eram tratados com benevolência. A própria Dª. Maria Paes de Barros conta a cena da mãe extraindo um espinho do pé de um escravo, e como eram tratados os doentes. Era a caridade cristã e o perfume da Igreja Católica que impregnavam profundamente todos os aspectos da vida. É de se notar que essa sociedade era de tal maneira católica, que a virtude era praticada mesmo por aqueles que não professavam os princípios da Santa Igreja.
Catolicismo — Disso tudo, resta algo?
Dr. Eduardo — Infelizmente, é preciso dizer que pouco restou daquela época.
Catolicismo — Por quê?
Dr. Eduardo — Porque as pessoas foram abandonando a Santa Igreja. Aquela sociedade baseada nos princípios católicos como que se autodissolveu. Os princípios igualitários, o crescimento desordenado, o enriquecimento rápido e anorgânico, a luta de classes, a imoralidade modificaram completamente a fisionomia de São Paulo.
O marco dessa transformação, muito mais que a proclamação da República, foi a Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas na presidência do País, inaugurando uma república populista que apoiava as mudanças sociais reclamadas pela esquerda. Já combalida economicamente pela formidável crise do café de 1929, a aristocracia rural, que liderava a sociedade paulista, perdeu-se no anonimato e no tumulto de uma São Paulo cada vez mais rica, mas cada vez mais diferente do que fora.
No entanto, um paulista houve que, recolhendo com amor o antigo e abençoado legado do Bem-aventurado Pe. Anchieta, seguindo os exemplos da virtude que distinguiu Frei Galvão, animado pela velha e sólida fibra dos bandeirantes, seus antepassados, resistiu! Contra ventos e tempestades, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira fundou em São Paulo a TFP, que combate a Revolução e propugna uma sociedade sacral e hierárquica baseada nos princípios perenes da doutrina católica. Além de sua luta intransigente, de seu trabalho infatigável, de sua ação vigorosa como pensador católico, Dr. Plinio deixou-nos em sua última obra, Nobreza e elites tradicionais análogas, o caminho a percorrer para uma autêntica restauração, não só da sua querida São Paulo, mas da Civilização Cristã no Ocidente.
Revista “Catolicismo” – Janeiro 2004
www.catolicismo.com.br